Transições superficiais

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O prêmio Nobel de Física desse ano foi atribuído a três pesquisadores que desenvolveram os fundamentos teóricos para explicar um tipo particular de transição de fase, as transições de fase topológicas. O assunto é bastante complexo, mas fiz um esforço para tentar traduzir um pouco dessa grande contribuição para o entendimento  mais fundamental da natureza.

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TRANSIÇÕES SUPERFICIAIS


Coluna Física sem mistério
Ciência Hoje On-line
publicada em 28/11/2016

Em outubro, são anunciados os ganhadores do prêmio Nobel. No campo da física, as três últimas premiações foram concedidas: por trabalhos que confirmaram a existência do bóson de Higgs, partícula prevista pelo chamado modelo padrão da física, que descreve as partículas e forças fundamentais (2013); pela invenção do LED de cor azul, que permitiu a construção das lâmpadas de LED usadas atualmente (2014); e por resultados que mostraram que os neutrinos, partículas sem carga elétrica, têm massa (2015).
Em 2016, criou-se uma expectativa em relação ao prêmio após o anúncio, no início do ano, de uma das mais importantes descobertas científicas dos últimos tempos: a observação direta, pela primeira vez, das ondas gravitacionais previstas pelo físico alemão Albert Einstein há 100 anos. Embora não houvesse dúvidas sobre o fenômeno observado, o grupo de pesquisadores que fez essa descoberta não ganhou o prêmio deste ano. Como se trata apenas da primeira observação, o comitê responsável pela escolha dos vencedores provavelmente deve esperar outras.
O prêmio de 2016 foi concedido a três pesquisadores: metade para David J. Thouless e a outra metade para J. Michel Kosterlitz e F. Duncan M. Haldane, pela “descoberta teórica de transições de fase topológicas e as fases topológicas da matéria”. Esse é um tema muito complexo em física, bastante distante do cotidiano das pessoas. Vou tentar explicar a importância dos trabalhos desses pesquisadores, pois já usei alguns de seus resultados em minhas pesquisas.

Estados da matéria

Na escola, costumamos aprender sobre os três estados da matéria – sólido, líquido e gasoso –, bem como suas transformações. Por exemplo: se retirarmos uma pedra de gelo do congelador (normalmente a -120C) e a deixarmos dentro de um copo em temperatura ambiente (250C), ela primeiro fica mais ‘branca’ e, depois, começa a derreter, transformando-se em água líquida. O embranquecimento deve-se à transformação do vapor d’água que está no ambiente em líquido e, depois, em sólido. É como se nevasse sobre a pedra de gelo.
Já o derretimento do gelo acontece devido ao seu contato com o ambiente, que está em uma temperatura mais alta. A pedra de gelo começa a se aquecer até a temperatura de 0oC, que é o ponto de congelamento da água ao nível do mar, e mantém essa temperatura até ser totalmente convertida em água líquida.

Por outro lado, se pegarmos água líquida e a aquecermos em uma panela, sua temperatura aumentará até 100oC (se estivermos no nível do mar), momento em que ela começará a evaporar e se transformar totalmente em vapor d’água.
Esses processos são chamados de transição de fase do estado sólido (gelo) para o líquido (água) e do líquido para o vapor. Nesses tipos de transições de fases, pelo menos uma propriedade do sistema muda de maneira importante. No caso das transições de fase da água, por exemplo, o que muda é sua densidade. Curiosamente, a densidade da água no estado sólido (gelo) é menor que a densidade no estado líquido (por isso, o gelo flutua na água), mas é maior que a densidade no estado de vapor. A densidade é considerada pelos físicos o ‘parâmetro de ordem do sistema’, que se modifica de maneira significativa na transição de fase de toda matéria.

Ao derreter, o gelo passa por um processo chamado de transição de fase do estado sólido para o líquido. (foto: Pixabay.com/ Domínio Público)

Mas existem ainda outros estados da matéria, como o plasma, que surge quando a matéria está em temperaturas muito altas, como a que existe nas estrelas, onde os elétrons são arrancados dos átomos, deixando-os altamente ionizados.
Em baixas temperaturas, por volta de -273oC (a menor temperatura possível), podemos observar novas fases da matéria, associadas a fenômenos quânticos. Na supercondutividade, por exemplo, alguns materiais apresentam uma fase em que sua resistência elétrica vai a zero, tornando possível a passagem de uma corrente elétrica sem que haja perda de energia. Outro exemplo ocorre com materiais como o ferro, que, em certa temperatura, podem deixar de ser magnéticos, caracterizando o que se chama de transição de fase magnética.

Dimensões reduzidas

Os ganhadores do prêmio Nobel deste ano desenvolveram um modelo matemático geral para descrever o comportamento de transições de fase que ocorrem em supercondutores ou sistemas magnéticos com dimensões reduzidas. Kosterlitz e Thouless estudaram a transições de fase de materiais bidimensionais, cuja altura é muito pequena comparada com a largura e o comprimento, de forma que podemos considerá-los apenas em duas dimensões. Haldane estudou a matéria que, por formar fios tão finos, pode ser considerada unidimensional.
Como já foi dito, nas transições de fase da água, existe um parâmetro de ordem (a densidade) que muda de uma fase para outra. No caso dos sistemas bidimensionais estudados por esses pesquisadores (como os materiais supercondutores), havia uma transição de fase sem a mudança do parâmetro de ordem. A transição de fase ocorria devido a uma mudança topológica, ou seja, uma mudança na forma como se dá o arranjo de determinadas estruturas características da matéria. Essa transição ficou conhecida como transição de Kosterliz-Thouless.
Uma mudança topológica, por exemplo, ocorre quando um objeto é esticado, torcido ou deformado, sem ser dilacerado, mas mantém certas propriedades intactas. Topologicamente, uma esfera e uma bacia pertencem à mesma categoria, porque uma massa esférica de argila, por exemplo, pode ser transformada em uma bacia. Uma rosca com um furo no meio e uma xícara de café com alça furada pertencem a outra categoria. Elas também podem ser remodeladas para formar outros objetos.
Os estudos de Kosterlitz, Thouless e Haldane ganharam maior relevância nos últimos anos, com a descoberta dos isolantes topológicos, materiais que apresentam as propriedades investigadas por eles. Os isolantes topológicos são condutores somente na sua superfície e podem permitir a existência de determinados estados quânticos da matéria apenas nessa camada superficial. Esses estados quânticos poderão ser usados para gerar os chamados ‘qbits’ (bits quânticos), que podem levar ao desenvolvimento dos computadores quânticos, máquinas extremamente poderosas que empregariam propriedades quânticas para o processamento de informações.

Entre os materiais que apresentam as propriedades estudadas pelos vencedores do Nobel estão os isolantes topológicos, que são condutores somente na sua superfície e podem ser usados no desenvolvimento de computadores quânticos. (foto: Penn State/ Flickr/ CC BY-NC-ND 2.0)
 Os segredos que começaram a ser desvendados pelos ganhadores do Nobel de Física deste ano ainda nos trarão muitos avanços. Agora as transições topológicas da matéria precisam ser mais investigadas, para nos levar a novos e fascinantes desdobramentos. Isso evidencia a importância da pesquisa básica para a ciência, mesmo que, em um primeiro momento, não haja perspectivas de aplicações práticas.


Adilson de Oliveira
Departamento de Física
Universidade Federal de São Carlos

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