As certezas de Sherlock Holmes

Coluna Física sem mistério
Ciência Hoje On-line
publicada em 17/02/2012


Filmes de ação e mistério são atualmente um dos mais importantes filões do cinema de grande público, o chamado blockbuster. Entre os muitos que estrearam no final do ano passado e no começo de 2012, um me chamou a atenção: Sherlock Holmes: O Jogo de Sombras, no qual o famoso personagem criado pelo escritor inglês Arthur Conan Doyle (1859-1930) volta às telas em uma história que mistura suspense, mistério e ação.
Como esta coluna não é de crítica de cinema (pois não tenho qualquer competência para tal), não vou expressar a minha opinião sobre o filme, mas apenas discutir um ponto que foi muito explorado, inclusive no primeiro filme da série, lançado em 2009. Trata-se da capacidade de Sherlock Holmes de prever e antecipar as ações de seus agressores (que ao longo do filme são muitos). A partir das evidências, ele reconstitui os passos dos criminosos, inclusive os do professor Moriarty, o grande adversário do herói.
Com uma visão analítica e um incrível pensamento dedutivo, Sherlock Holmes é capaz de antecipar os movimentos de seus adversários nas lutas travadas e imaginar como anulá-los. Ao investigar os vestígios e pistas, ele também consegue adivinhar o que aconteceu e, assim, resolver os mistérios e crimes. Esse aspecto das habilidades de Sherlock Holmes já foi inclusive discutido em coluna anterior.
O procedimento utilizado por Sherlock Holmes para antever as ações dos seus oponentes é similar ao que os grandes jogadores de xadrez usam em suas partidas. Eles preveem os desdobramentos de cada jogada, muitos lances para frente, e com isso tentam superar o adversário.
Jogadores experientes podem perceber uma derrota ou uma vitória até dezena de lances antes do fim da partida. O detalhe importante do jogo de xadrez é que cada peça tem um movimento preestabelecido e o tabuleiro é limitado a 64 casas. Mesmo assim, para cada movimento existem até milhares de respostas possíveis.
Mas será que realmente é possível prever as situações de modo similar ao que Sherlock Holmes faz, uma vez que as reações humanas são bem mais complexas do que as regras de uma partida de xadrez?

O determinismo científico

A mecânica clássica, incialmente proposta pelo físico inglês Isaac Newton (1642-1727), apresentou, pela primeira vez, um modelo científico que poderia determinar, com grande precisão, movimentos de objetos comuns e até de planetas.
Essa teoria é baseada em leis simples, como o princípio da inércia (no qual um corpo permanece em repouso ou em movimento uniforme, se não houver ação de forças), o princípio fundamental da mecânica (segundo o qual há uma relação entre força e quantidade de movimento), o princípio da ação e reação (a toda ação existe uma reação igual e contrária de mesma intensidade) e a lei da gravitação universal (a atração entre os corpos é proporcional ao produto da massa e ao inverso do quadrado da distância que os separa).
Assim, a mecânica clássica permitia, pela primeira vez, uma descrição quase completa da natureza. Conhecendo a velocidade e a posição inicial de uma partícula, seria possível, em princípio, conhecer os seus movimentos passados, presentes e futuros.
Tamanho é o poder de predição dessa teoria que, em 1846, a partir de cálculos elaborados independentemente, Urbain Le Verrier (1811-1877) e John Couch Adams (1819-1892) puderam explicar o estranho movimento que o planeta Urano parecia fazer ao redor do Sol.
Não se tratava de um erro na física newtoniana, mas sim um novo planeta, que estava mais afastado. Esses astrônomos conseguiram prever a posição do planeta, que foi descoberto pelo astrônomo alemão Johann Gottfried Galle (1812-1910) e posteriormente batizado de Netuno. Esse foi um dos maiores resultados obtidos pela mecânica clássica.
ontudo, descrever o movimento de planetas é muito mais simples do que tentar prever as ações e os movimentos humanos. Já no século 19 imaginava-se que as leis de Newton talvez não pudessem descrever fenômenos mais complexos, por exemplo, o comportamento de muitos átomos ou moléculas interagindo mutuamente, como os que encontramos em um gás.
Embora, em um primeiro momento, possa se descrever o comportamento de uma única partícula utilizando os princípios newtonianos, quando temos situações mais complicadas essa descrição falha.

Os sistemas complexos

Um exemplo desse tipo de situação ocorre nos chamados sistemas complexos, que são sistemas cujas propriedades decorrem da reação não linear entre as partes, ou seja, a resposta que o sistema apresenta não é proporcional apenas às interações individuais das partículas que o compõem, mas também ao conjunto como um todo. Um sistema complexo é muito mais do que a soma das partes individuais.
Existem muitos sistemas complexos na natureza. O nosso próprio cérebro é um deles. Não podemos analisar isoladamente apenas um neurônio e suas ligações com seus primeiros vizinhos e depois somar tudo isso para entender o funcionamento do cérebro. Temos que levar em conta a ação conjunta de bilhões dessas células interconectadas com os vários órgãos do nosso corpo. Ou seja, somente quando consideramos o indivíduo como um todo é que podemos começar a compreendê-lo.
Nesse sentido, as ações e decisões que tomamos a partir das informações e experiências que acumulamos ao longo da nossa vida surgem de um processo sinergético muito complexo, que não pode ser encarado apenas como efeito de ação e reação. Em um exemplo do filme Sherlock Holmes, o detetive imagina, em uma fração de segundo, que receberá um soco e deverá desviar a cabeça e reagir com outro golpe e que o adversário reagirá de outra forma, e assim por diante, até que ele consegue derrubá-lo usando as sequências de defesa e ataque únicas e corretas.
De fato, do ponto de vista da física de sistemas complexos, tal previsão seria extremamente complicada, diferentemente do que ocorre em uma partida de xadrez, onde é possível prever os lances porque o sistema é muito mais simples. Se o adversário não fizer a melhor sequência de lances, provavelmente ele perderá a partida antes do esperado.
Mas mesmo sendo o xadrez um sistema mais simples, prever seus lances sem contar com a inteligência do jogador requer um algoritmo computacional muito sofisticado e computadores com grande capacidade de processamento. Os grandes mestres só conseguem derrotar computadores poderosos porque as soluções encontradas são baseadas em formas diferentes de pensar, e não em uma visão determinista dos movimentos.
Com base no que relata esse último filme, Sherlock Holmes de fato tem algum poder especial para conseguir vencer os seus adversários, até o seu maior inimigo, o professor Moriarty, que tem as mesmas habilidades do herói, mas as usa em benefício próprio. Apesar da aparente facilidade com que o detetive faz suas previsões, as atitudes e decisões do ser humano não podem ser vistas apenas como resultado de ações isoladas, mas como a resposta de uma complexa interação entre as partes.




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