Os segredos que o frio esconde

Coluna Física sem mistério
Publicada no Ciência Hoje On-line
16/05/2008

Durante esta época do ano, em maio e junho, quando já passamos do meio do outono e com o inverno se aproximando, algumas regiões do Brasil começam a apresentar com mais freqüência temperaturas mais baixas que as de outras épocas do ano, principalmente os estados do Sul e Sudeste. Essa mudança do tempo, devida à ocorrência das estações do ano, está associada ao movimento translação que a Terra realiza ao redor do Sol.

Como o eixo de rotação da Terra é inclinado cerca de 23 graus em relação a uma reta perpendicular ao plano da sua órbita, o hemisfério Sul nessa época do ano fica menos iluminado do que o Norte. Durante o inverno no Sul, há verão no Norte. Na cidade de São Paulo, podemos observar diferenças de temperatura de quase 25ºC entre o verão e inverno.

Em nosso planeta existem regiões que já apresentaram temperaturas muito baixas, quando comparadas com as que ocorrem no inverno brasileiro. A temperatura mais baixa já registrada (e confirmada) no planeta ocorreu na estação russa Vostok, na Antártica, em 1983, quando o termômetro acusou -89,2ºC.

Quando mencionamos uma determinada temperatura, é preciso especificar em qual escala ela está sendo medida. A escala Celsius, muito comum no Brasil e na Europa, não é utilizada universalmente. Nos Estados Unidos, a escala mais utilizada é a Fahrenheit. Na escala Celsius, a água no nível do mar se congela a zero grau e ferve a 100 graus. Na escala Fahrenheit, os pontos de congelamento e ebulição da água são de 32 e 212 graus, respectivamente.

Entretanto, existe uma escala de temperatura considerada absoluta, pois foi proposta a partir da constatação de que existe um limite mínimo para essa grandeza. A temperatura mínima equivale a zero kelvin, ou -273,15ºC. Além de não existir uma temperatura menor que zero kelvin, esta também nunca pode ser atingida. Existe uma limitação na natureza para que isso ocorra e ela está relacionada com as leis da termodinâmica, em particular com a segunda delas.

Calor e transferência de energia
A primeira lei da termodinâmica expressa a conservação da energia. Ela esclarece que podemos apenas transferir energia para um corpo a partir da realização de um trabalho ou por troca de calor. Vejamos um exemplo. Quando levantamos um copo de vidro a uma altura de um metro, estamos realizando um trabalho para que isso aconteça. A força da gravidade, que tende a atrair todos os corpos, é contrária a esse tipo de movimento e, por isso, quando levantamos o objeto, este acumula energia no campo gravitacional terrestre (chamada de energia potencial gravitacional).

Ao soltarmos o copo, ele entra em movimento em direção ao chão (por causa da gravidade que o atrai) e vai transformando a energia potencial gravitacional em energia cinética (energia de movimento). Ao bater no chão, o copo sofre uma parada brusca do movimento e a energia cinética se dissipa na forma de calor e som e, na grande maioria dos casos, quebrando as ligações das moléculas que o compõem, transformando-o em muitos cacos.

Por outro lado, quando utilizamos uma queima em uma máquina térmica qualquer, como um automóvel ou mesmo nosso próprio corpo, realizamos um processo de transformação da energia química presente nas ligações moleculares em calor. No caso dos automóveis, o combustível reage com o ar, liberando calor e expandindo os gases no interior dos cilindros do motor, proporcionando o movimento de eixos que fazem o carro andar.

No corpo humano, a “queima” acontece no interior das células. O motor celular principal é uma organela chamada mitocôndria, que extrai energia principalmente da glicose (contida nos alimentos que comemos), transformando-a em moléculas de ATP (adenosina trifosfato), que são utilizadas para liberar a energia química em todo o nosso organismo.

Entretanto, embora a energia sempre se conserve nos processos físicos, químicos e biológicos, há sempre uma fração perdida na forma de calor que não é aproveitada, ou seja, apenas uma parte dessa energia pode se transformar em trabalho útil. Nos automóveis, cerca de dois terços da energia liberada da queima de combustível é perdida na forma de calor. No caso do nosso corpo, que é muito mais eficiente, o rendimento é superior a 60%. Por esse motivo, o motor do automóvel funde se não for refrigerado adequadamente e o nosso organismo entra em colapso caso não consiga controlar sua temperatura.

Em busca da máquina ideal
A constatação de que é impossível obter um processo com 100% de eficiência (transformar toda a energia em trabalho útil) foi feita pela primeira vez pelo engenheiro francês Sadi Carnot (1796-1832), que procurava encontrar uma máquina térmica perfeita. Ele conseguiu mostrar que a máquina térmica mais eficiente possível seria aquela que funcionasse sem atrito e dependesse somente da diferença de temperatura entre dois reservatórios térmicos. Essa “máquina ideal”, que na prática só pode ser obtida de maneira aproximada, é chamada de máquina de Carnot.

Dessa forma, uma máquina térmica somente teria 100% de eficiência se a temperatura de um dos reservatórios térmicos fosse 0 kelvin. Como é impossível ter uma máquina com 100% de eficiência, conclui-se que é impossível chegar à temperatura de 0 kelvin!

Em 10 de julho de 1908, há cem anos, o físico holandês Heike Kamerlingh-Onnes (1853-1926) conseguiu pela primeira vez na história atingir a temperatura de 4 kelvin liqüefazendo o gás hélio em Leiden, na Holanda. A partir disso foi possível estudar o comportamento de materiais nessa temperatura tão baixa. Em 1911, Onnes e seus estudantes descobriram que, nessa temperatura, o metal mercúrio não apresentava qualquer resistência à passagem da corrente elétrica. Esse fenômeno posteriormente ficou conhecido como supercondutividade, e sua descoberta rendeu o Nobel de Física a Onnes em 1913.

Além de não oferecer resistência à passagem de corrente, um material supercondutor tem a propriedade de expulsar de seu interior qualquer campo magnético que lhe seja aplicado. Esse efeito foi descoberto em 1933 pelos alemães Walther Meissner (1882-1974) e Robert Ochsenfeld (1901-1993). Posteriormente, foram descobertos muitos outros materiais que exibem o fenômeno da supercondutividade em temperaturas mais altas. O recorde atual é um composto cerâmico consistindo dos elementos tálio, mercúrio, cobre, bário, cálcio e oxigênio que se mantém supercondutor até a temperatura de 138 kelvins, ou seja, -135ºC.

A supercondutividade é atualmente aplicada, por exemplo, nas máquinas de ressonância magnética, na forma de bobinas para gerar altos campos magnéticos que permitem obter imagens das estruturas de órgãos internos como o cérebro. O efeito descoberto por Meissner e Ochsenfeld permite também que ímãs levitem sobre um supercondutor, o que permitiu construir trens-bala que flutuam sobre trilhos e alcançam velocidades superiores a 400 km/h.

Temperaturas extremamente baixas criam condições para a ocorrência de muitos outros fenômenos. Eles não aparecem em temperaturas mais altas porque a agitação térmica é suficiente para impedir a sua manifestação. Descobri-los e aproveitá-los em benefício da humanidade talvez seja uma questão de tempo. Como vemos, o frio pode esconder muitos segredos que ainda não foram revelados.

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A coluna Física sem Mistério é publicada na terceira sexta-feira do mês pelo físico Adilson J. A. de Oliveira, professor da UFSCar

Comentários

  1. Boas idéias,
    Noé
    http://consiliencia.blogspot.com/

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  2. Como sempre...Excelente pedagogia e dinamismo.
    Infelizmente~não existem muitas pessoas a fazer o ensino da física de forma transversal.

    Parabéns.

    Félix

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  3. Caro FElix.
    Obrigado pelo comentário
    O seu blog também é sempre interessante.
    Um abraço
    Adilson

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  4. Anônimo7:47 AM

    Excelente post. Muito interessante e escrito de forma clara. Parabéns.

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  5. Caro Abrantes,
    Obrigado pelo comentário.
    É sempre bom ter um retorno para nos incentivar nessa empreitada.
    Um abraço
    Adilson

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