A ciência pode explicar até o futebol?
Coluna Física sem Mistério
Ciência Hoje On-Line
23 de junho de 2006
O futebol é, sem dúvida, uma das maiores paixões dos brasileiros. Nesta época de Copa do Mundo todos param para assistir pelo menos aos jogos da seleção brasileira. Nos comentários das transmissões esportivas algo que costuma chamar minha atenção é o ditado popular segundo o qual “a teoria na prática é outra”. Quantas vezes já ouvimos que “em teoria” um time é imbatível e, conseqüentemente, é considerado campeão por antecipação? Como bem sabemos, isso nem sempre acontece. Um técnico pode ter a sua disposição excelente jogadores e um esquema tático infalível, mas nem sempre os melhores times vencem e perdem partidas decisivas para equipes que “em teoria” são mais fracas. Por que será que isso acontece?
Uma das respostas comuns é que “a teoria na prática é outra” e que o futebol não é uma ciência exata e, por isso, de difícil previsão. Podemos utilizar nossos conhecimentos sobre as leis de movimentos de corpos e descrever com absoluta precisão a trajetória da bola. Ao usarmos a fisiologia podemos determinar como está a condição física do jogador e estimar a possibilidade de ele alcançar um lançamento em profundidade. A psicologia poderá determinar o estado emocional do jogador e saber como ele reage perante a situações que ocorrem durante o jogo.
Contudo, mesmo aplicando todos esses conhecimentos, dificilmente poderíamos prever um “lance de craque”, como aquele de Ronaldinho Gaúcho ao marcar um gol contra a Inglaterra, batendo uma falta que encobriu o goleiro Seaman, na Copa do Mundo de 2002 na Coréia e no Japão.
Outros exemplos, não somente no futebol, mostram que nem sempre é fácil descrever o mundo que nos cerca. As situações práticas do cotidiano são complexas demais para serem descritas de maneira simples. O problema não é que “a teoria na prática é outra”, mas sim que nem sempre é possível determinar e controlar todos os fatores que interferem em uma determinada situação, principalmente quando estes são influenciados pela a vontade humana. É o caso do craque de futebol que, em uma fração de segundo, faz o inesperado e nos encanta com uma jogada inesquecível. Nesse caso, o jogador faz algo que logicamente não seria o esperado. Os comentaristas esportivos chamam isso de criatividade.
Modelos e previsões
Toda essa discussão nos remete ao fato de que algumas vezes a ciência parece não funcionar. Em particular as ciências chamadas de “duras” – como a física, a química, a biologia etc. – estão baseadas em modelos. Um modelo é um conjunto de hipóteses sobre a estrutura ou o comportamento de um sistema. No caso da física, por meio de modelos procura-se explicar ou prever as propriedades de um sistema - que pode ser tanto um átomo quanto o universo inteiro - a partir de alguns postulados básicos.
Normalmente, o primeiro modelo que se elabora é uma simplificação de uma situação complexa. Por exemplo, para a física descrever a trajetória da bola chutada pelo Ronaldinho Gaúcho, em uma primeira aproximação, é necessário apenas saber qual foi a velocidade da bola e o ângulo em que ela foi chutada. Com isso, pode-se prever que a trajetória da bola será uma parábola.
Contudo, essa aproximação pode não ser suficiente para de fato explicarmos como a bola conseguiu enganar o goleiro naquele lance. Para uma melhor descrição é importante também saber qual é a velocidade do vento, a pressão atmosférica e a temperatura do local, quanto a bola se deformou ao ser chutada e qual o sentido de rotação que ela adquiriu em torno de si após o chute. Além disso, esse lance não depende apenas dessas informações físicas. A condição fisiológica, mental e emocional e a intuição do jogador com certeza são fundamentais para o sucesso daquele lance.
A ciência é construída por meio de revolução em seus modelos. Há cerca de 2500 anos, na Grécia antiga, Aristóteles, um dos maiores pensadores da história, diria que a bola chutada pelo Ronaldinho Gaúcho percorreria uma linha reta e depois cairia bem atrás do goleiro, pois, segundo ele, quando se deixa de aplicar uma força em qualquer objeto, este tenderia a parar de se mover e voltar ao seu lugar natural, que é a superfície da Terra.
Galileu, no século 17, mostrou que, se um objeto não sofrer nenhuma influência externa, sua tendência é continuar em movimento. Ele diria, portanto, que a bola de Ronaldinho Gaúcho descreveria uma parábola perfeita (como de fato aproximadamente acontece). Isaac Newton, que nasceu exatamente no ano da morte de Galileu, em 1642, diria que a bola descreve esse movimento parabólico devido à ação da força da gravidade, que atrai qualquer corpo para a superfície da Terra e também é capaz de manter os planetas girando ao redor do Sol. Se Albert Einstein visse o gol, ele poderia dizer que a trajetória da bola é determinada pela curvatura do espaço provocada pela presença da massa da Terra, pois, segundo o seu modelo, a massa encurva o espaço, da mesma maneira que uma bola colocada sobre um lençol o encurva.
Uma criação humana
Todos esses modelos podem ser usados para descrever a trajetória de uma bola chutada por um jogador de futebol. A simplicidade ou a complexidade de cada um deles nos leva a diferentes descrições que podem (ou não) refletir a realidade. O mais importante de tudo isso é que não podemos esquecer que a ciência é uma criação humana como tentativa para entender o universo em que vivemos. Dessa forma, da próxima vez em que ouvirmos que “a teoria na prática é outra”, não devemos achar que a ciência e as teorias nunca funcionam, mas sim que os modelos que estamos utilizando talvez sejam incompletos ou simplistas demais. Contudo, o interessante é saber que, para fazer um “golaço”, o jogador de futebol não precisa saber nada disso. Precisa apenas deixar o seu talento fluir e a sua intuição agir. Afinal, o gol que encanta os torcedores também é uma forma de arte.
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A coluna Física sem Mistério é publicada na terceira sexta-feira do mês pelo físico Adilson J. A. de Oliveira, professor da UFSCar
Ciência Hoje On-Line
23 de junho de 2006
O futebol é, sem dúvida, uma das maiores paixões dos brasileiros. Nesta época de Copa do Mundo todos param para assistir pelo menos aos jogos da seleção brasileira. Nos comentários das transmissões esportivas algo que costuma chamar minha atenção é o ditado popular segundo o qual “a teoria na prática é outra”. Quantas vezes já ouvimos que “em teoria” um time é imbatível e, conseqüentemente, é considerado campeão por antecipação? Como bem sabemos, isso nem sempre acontece. Um técnico pode ter a sua disposição excelente jogadores e um esquema tático infalível, mas nem sempre os melhores times vencem e perdem partidas decisivas para equipes que “em teoria” são mais fracas. Por que será que isso acontece?
Uma das respostas comuns é que “a teoria na prática é outra” e que o futebol não é uma ciência exata e, por isso, de difícil previsão. Podemos utilizar nossos conhecimentos sobre as leis de movimentos de corpos e descrever com absoluta precisão a trajetória da bola. Ao usarmos a fisiologia podemos determinar como está a condição física do jogador e estimar a possibilidade de ele alcançar um lançamento em profundidade. A psicologia poderá determinar o estado emocional do jogador e saber como ele reage perante a situações que ocorrem durante o jogo.
Contudo, mesmo aplicando todos esses conhecimentos, dificilmente poderíamos prever um “lance de craque”, como aquele de Ronaldinho Gaúcho ao marcar um gol contra a Inglaterra, batendo uma falta que encobriu o goleiro Seaman, na Copa do Mundo de 2002 na Coréia e no Japão.
Outros exemplos, não somente no futebol, mostram que nem sempre é fácil descrever o mundo que nos cerca. As situações práticas do cotidiano são complexas demais para serem descritas de maneira simples. O problema não é que “a teoria na prática é outra”, mas sim que nem sempre é possível determinar e controlar todos os fatores que interferem em uma determinada situação, principalmente quando estes são influenciados pela a vontade humana. É o caso do craque de futebol que, em uma fração de segundo, faz o inesperado e nos encanta com uma jogada inesquecível. Nesse caso, o jogador faz algo que logicamente não seria o esperado. Os comentaristas esportivos chamam isso de criatividade.
Modelos e previsões
Toda essa discussão nos remete ao fato de que algumas vezes a ciência parece não funcionar. Em particular as ciências chamadas de “duras” – como a física, a química, a biologia etc. – estão baseadas em modelos. Um modelo é um conjunto de hipóteses sobre a estrutura ou o comportamento de um sistema. No caso da física, por meio de modelos procura-se explicar ou prever as propriedades de um sistema - que pode ser tanto um átomo quanto o universo inteiro - a partir de alguns postulados básicos.
Normalmente, o primeiro modelo que se elabora é uma simplificação de uma situação complexa. Por exemplo, para a física descrever a trajetória da bola chutada pelo Ronaldinho Gaúcho, em uma primeira aproximação, é necessário apenas saber qual foi a velocidade da bola e o ângulo em que ela foi chutada. Com isso, pode-se prever que a trajetória da bola será uma parábola.
Contudo, essa aproximação pode não ser suficiente para de fato explicarmos como a bola conseguiu enganar o goleiro naquele lance. Para uma melhor descrição é importante também saber qual é a velocidade do vento, a pressão atmosférica e a temperatura do local, quanto a bola se deformou ao ser chutada e qual o sentido de rotação que ela adquiriu em torno de si após o chute. Além disso, esse lance não depende apenas dessas informações físicas. A condição fisiológica, mental e emocional e a intuição do jogador com certeza são fundamentais para o sucesso daquele lance.
A ciência é construída por meio de revolução em seus modelos. Há cerca de 2500 anos, na Grécia antiga, Aristóteles, um dos maiores pensadores da história, diria que a bola chutada pelo Ronaldinho Gaúcho percorreria uma linha reta e depois cairia bem atrás do goleiro, pois, segundo ele, quando se deixa de aplicar uma força em qualquer objeto, este tenderia a parar de se mover e voltar ao seu lugar natural, que é a superfície da Terra.
Galileu, no século 17, mostrou que, se um objeto não sofrer nenhuma influência externa, sua tendência é continuar em movimento. Ele diria, portanto, que a bola de Ronaldinho Gaúcho descreveria uma parábola perfeita (como de fato aproximadamente acontece). Isaac Newton, que nasceu exatamente no ano da morte de Galileu, em 1642, diria que a bola descreve esse movimento parabólico devido à ação da força da gravidade, que atrai qualquer corpo para a superfície da Terra e também é capaz de manter os planetas girando ao redor do Sol. Se Albert Einstein visse o gol, ele poderia dizer que a trajetória da bola é determinada pela curvatura do espaço provocada pela presença da massa da Terra, pois, segundo o seu modelo, a massa encurva o espaço, da mesma maneira que uma bola colocada sobre um lençol o encurva.
Uma criação humana
Todos esses modelos podem ser usados para descrever a trajetória de uma bola chutada por um jogador de futebol. A simplicidade ou a complexidade de cada um deles nos leva a diferentes descrições que podem (ou não) refletir a realidade. O mais importante de tudo isso é que não podemos esquecer que a ciência é uma criação humana como tentativa para entender o universo em que vivemos. Dessa forma, da próxima vez em que ouvirmos que “a teoria na prática é outra”, não devemos achar que a ciência e as teorias nunca funcionam, mas sim que os modelos que estamos utilizando talvez sejam incompletos ou simplistas demais. Contudo, o interessante é saber que, para fazer um “golaço”, o jogador de futebol não precisa saber nada disso. Precisa apenas deixar o seu talento fluir e a sua intuição agir. Afinal, o gol que encanta os torcedores também é uma forma de arte.
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A coluna Física sem Mistério é publicada na terceira sexta-feira do mês pelo físico Adilson J. A. de Oliveira, professor da UFSCar
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